domingo, 18 de setembro de 2011

Bem e Mal


 





Um poder latente envolve todos os mundos, todas as criatura, o bem e o mal. E esse poder é a verdadeira Unidade. Como ele pode abrigar dentro de si os opostos do bem e do mal? Na verdade não existe paradoxo nessa afirmação, pois o mal serve de trono para o bem.

Baal Schem Tow






É forçoso que abordemos um assunto não só da maior dificuldade para nós, seres humanos, como também é um tema que está sujeito a toda sorte de mal-entendidos. É muito arriscado destacar de forma aleatória algumas sentenças ou excertos do presente contexto e misturá-los a outros contextos filosóficos diferentes. Justamente a análise do bem e do mal, segundo a nossa experiência, pode provocar a emergência de medos os mais profundos e arraigados, capazes de confundir em especial a organização emocional e de perder seu poder de discriminação. No entanto, apesar do risco, ousaremos fazer a pergunta que Anfortas evita; mais precisamente, qual é a natureza do mal. Pois, quando constatamos que a doença é uma conseqüência das ações da sombra, ela deve sua existência à nossa indecisão entre o bem e o mal, entre o que é certo e o que é errado.

A sombra contém tudo o que o homem classificou como “mal”; é por esse motivo que também a sombra tem de ser "má". Sendo assim, os homens não só acham justificável, mas até mesmo necessário por uma questão de ética e moralidade, lutar contra a sombra e eliminá-la sempre que ela surgir à tona. Também neste caso, a humanidade fica tão fascinada com a lógica aparente que não percebe que seu nobre objetivo está prestes a falhar, que a erradicação do mal não funciona. Por isso mesmo, acho que vale a pena analisar este assunto "do bem e do mal" outra vez, talvez de pontos de vista inusitados.

A análise anterior sobre a Lei da Polaridade nos fez chegar à conclusão de que o bem e o mal são dois aspectos de uma e mesma unidade e que, portanto, dependem um do outro para existir. O bem vive do mal e o mal, do bem e todo aquele que alimentar o bem, também estará, talvez sem ter consciência disso, alimentando o mal. À primeira vista, afirmações como a que acabamos de fazer podem parecer assustadoras e, no entanto, é difícil contestar sua correção, tanto no plano teórico como no prático.

Nossa posição cultural, no que se refere aos conceitos de bem e mal, está amplamente impregnada pelos ensinamentos da teologia cristã; portanto, é fortemente impregnada pelo Cristianismo. A mesma posição cultural vale para os círculos que se imaginam livres de ligações religiosas. Por isso nos propomos a analisar neste livro os conceitos e símbolos religiosos, esforçando-nos por obter uma melhor compreensão do significado do bem e do mal. Não temos, no entanto, a intenção de afirmar que qualquer teoria ou avaliação deriva de imagens bíblicas. Preferimos dizer que as histórias e imagens mitológicas são especialmente apropriadas para tornar os difíceis problemas metafísicos mais acessíveis à compreensão humana. O fato de citarmos histórias bíblicas depende tão-somente da visão cultural que herdamos; disso decorre que, ao mesmo tempo, descobriremos os pontos de divergência que separam a típica interpretação da teologia cristã sobre o bem e o mal daquela que é universal a todas as demais religiões do mundo.

No problema específico que abordamos, há no Antigo Testamento uma fonte bastante fecundada para o entendimento da assim chamada Queda do Paraíso. Recordamo-nos de que na Segunda Criação nos contam que o primeiro ser humano - um andrógino - Adão, é colocado no Paraíso no qual encontra todo o reino da natureza, e se vê diante de duas árvores muito especiais: a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Para compreender melhor essa narrativa mitológica é importante; assinalar que Adão não é um homem, porém um andrógino. Ele é um ser humano total, não está sujeito à polaridade, não está dividido em pares de opostos. Ele ainda é uno com toda a Criação, e esse estado de consciência é descrito como estar no Paraíso. Embora o ser humano Adão ainda viva num estado de unidade de consciência, o tema da polaridade é antecipado pela presença das duas árvores.

O tema da divisão perpassa toda a história da Criação, pois criar só é possível através de um processo de separação e divisão. É assim que o primeiro relato sobre a Criação já nos fala exclusivamente de polarizações: luz e trevas, água e terra, Sol e Lua etc. Apenas o ser humano, ao que nos consta, foi criado como "homem e mulher". Contudo, à medida que a narração prossegue, cada vez mais se intensifica o tema da polaridade. Eis que, finalmente, Adão resolve colocar parte de si mesmo “do lado de fora” e deixá-la adquirir vida independente. Inevitavelmente, esse passo já é um indício da perda de consciência - a nossa história relata esse fato dizendo que Adão adormeceu. Deus tirou do ser humano Adão, que era íntegro e sadio, uma de suas costelas e transformou-a em algo totalmente independente.

No texto original hebraico, a palavra que foi traduzida por Lutero como “costela” é tselah = flanco. Ela vem de mesma raiz que tsel, sombra. O ser humano são, inteiro, é receptivo e composto de dois aspectos formalmente diferenciáveis, chamados homem e mulher. Contudo, a divisão não atinge inteiramente a consciência dos dois seres humanos originais, visto que eles não reconhecem ainda suas diferenças, pois estão morando na totalidade do Paraíso. No entanto, a divisão formal providencia a oportunidade para a serpente seduzir a mulher – que é a parte mais vulnerável do ser humano – com suas palavras aliciadoras, prometendo-lhe que, ao comer o fruto da Árvore do Conhecimento, ela poderia distinguir entre o bem e o mal, ou seja, passaria a ter poder de discriminação.

A serpente cumpre sua promessa. Os homens passam a ver a polaridade e a distinguir entre bem e mal, entre homem e mulher. Com este passo, a raça humana perdeu sua totalidade (consciência cósmica) e atingiu a polaridade (poder de discriminação), o que, necessariamente, implica ter de abandonar o Paraíso, o Jardim da Unidade, e mergulhar no mundo polarizado das formas materiais.

Essa é a história da Queda do Paraíso, do pecado original. Nesta "que­da", o homem caiu da unidade para a polaridade. A mitologia de todas as raças e de todos os tempos conhece esse tema inerente à condição humana e o narra de modo semelhante. O pecado dos homens está no fato de terem se apartado da unidade. Ora, as palavras pecado e afastamento são lingüisticamente aparentadas. Na língua grega se percebe o verdadeiro sentido da palavra pecado: hamartäma quer dizer "o pecado" e o verbo correspondente hamartanein significa “deixar de acertar o alvo”, "perder o ponto", “pecar”. Aqui, então, pecado é a incapacidade de acertar o alvo, ou seja, exatamente o símbolo da unidade inatingível e inalcançável para a humanidade, pois ele não tem uma localização definitiva e muito menos uma extensão. A consciência polarizada é incapaz de acertar o alvo, de encontrar a unidade, e isso é o pecado. Pecar é sinônimo de polarizar-se. Com essa explicação, também a idéia cristã do "pecado original" se torna mais fácil de compreender.

Os homens se vêem diante de uma consciência polarizada: eles são pecadores. Não existe motivo original, no sentido causal. Essa polaridade obriga-nos a seguir nosso caminho em meio ao mundo de opostos até aprendermos a integrar tudo o que precisamos a fim de mais uma vez nos tornarmos “perfeitos como o Pai no Céu é perfeito”. O caminho através das polaridades, no entanto, implica inevitavelmente em tomar-se culpado. O conceito do "pecado original" demonstra, de modo muito claro, que o pecado nada tem que ver com o verdadeiro comportamento das pessoas. É importante pormos isso na cabeça, pois ao longo do tempo a Igreja distorceu o conceito de pecado e levou o povo a acreditar que pecado consiste em fazer o mal, e que pode ser evitado ao se praticar o bem e agir corretamente. O pecado, porém, não é só um dos pólos da polaridade: é a polaridade propriamente dita. E é por isso que o pecado é inevitável – ­qualquer ação humana é pecaminosa.

Encontramos essa mensagem, na sua forma mais íntegra, na tragédia grega, cujo tema central é o de que os seres humanos precisam decidir-se constantemente entre duas possibilidades, sempre terminando como culpados seja qual for sua decisão. Para a história do Cristianismo foi fatídico exatamente este mal-entendido teológico da verdadeira natureza do peca­do. As constantes tentativas dos fiéis para não cometerem pecados e evitarem praticar o mal levou à repressão daqueles âmbitos de comportamento classificados como errados, o que determinou um lento crescimento da sombra.

É à sombra que temos de agradecer o fato de o Cristianismo ter-se tornado, no decurso do tempo, uma das mais intolerantes religiões do mundo, responsável pela Inquisição, pela caça às bruxas e até mesmo pelo genocídio. O pólo que recusamos viver sempre se manifesta no final: na verdade, em geral, ele domina as almas mais nobres no momento exato em que elas menos esperam por isso.

A polarização entre "bem" e "mal" também provocou no Cristianismo algo que não é comum em outras religiões, mais precisamente, o confronto entre Deus e o diabo, como se estes fossem os representantes do "Bem" e do "Mal". Na medida em que transformou o diabo em rival de Deus, este foi irresistivelmente atraído para o mundo das polaridades. Com isso, Deus perdeu sua capacidade de cura. Deus é a Unidade que une indistintamente todas as polaridades dentro de Si mesmo, inclusive o "bem" e o "mal", é claro. Por outro lado, o demônio é uma polaridade, o Senhor, da Divisão, ou, nas palavras de Jesus, “o senhor deste mundo”. É por essa razão que ele é sempre representado pelos símbolos da dualidade, como chifres, ferraduras, garfos, pentagramas com duas pontas voltadas para cima etc. Trata-se de uma linguagem simbólica para demonstrar que o mundo polarizado é demoníaco, ou seja, pecaminoso. E, uma vez que não há meios para modificarmos isto, todos os grandes mestres nos ensinam a abandonar o mundo polarizado.

É aqui que enfrentamos a grande diferença entre a religião e a assistência social. Nenhuma religião verdadeira tentou transformar o mundo num paraíso, porém ensinou o caminho para fora dele, rumo à unidade. A verdadeira filosofia sabe que num mundo polarizado não é possível concretizar apenas um dos pólos, que, em tal mundo, é preciso compensar toda alegria com a mesma quantidade de sofrimento. Neste sentido, por exemplo, o conhecimento é “demoníaco”, pois ele defende a polaridade e nutre a multiplicidade. Toda utilização funcional das possibilidades humanas sempre tem algo de diabólico, pois essa utilização vincula a energia à polaridade e impede a unificação. É este conteúdo da tentação de Jesus no deserto: o demônio apenas estimula Jesus a devotar seus poderes à criação de mudanças inócuas, talvez até mesmo úteis. Devemos lembrá-los de que sempre atribuímos uma qualidade demoníaca a alguma coisa, o objetivo não é simplesmente relacionar conceitos como pecado, culpa e demônio a uma polaridade, chegando à conclusão de que tudo o que dela participa pode ser designado assim. Independentemente do que o homem fizer, ele se tornará culpado e, portanto, pecador. É importante que o ser humano aprenda a conviver com essa culpa, caso contrário, ele acaba sendo desonesto consigo mesmo. A salvação do pecado é obter a unidade, mas é impossível alcançá-la evitando justamente parte da realidade. E isso que torna o caminho rumo à cura tão difícil: precisamos passar pela culpa a fim de chegarmos lá.

Nos Evangelhos, esse antigo mal-entendido sempre está presente. Os fariseus defendem o ponto de vista tipicamente eclesiástico, de que a salvação pode ser obtida se seguirmos os mandamentos e evitarmos o mal. Jesus mostra esse mal-entendido ao dizer: “Quem de vós estiver sem pecado, que atire a primeira pedra”. No Sermão da Montanha, ele enfatiza e torna relativa a Lei de Moisés, pois na época em que Ele viveu, ela era bastante distorcida pela interpretação literal. Jesus assinalou que um simples pensamento tem o mesmo peso que sua concretização no exterior. Queremos chamar a atenção para o fato de que o efeito da exegese de Jesus no Sermão da Montanha não tornou os mandamentos mais rígidos, mas sim expôs a ilusão de que o pecado pode ser evitado através do mero recurso da polaridade. No entanto, apesar disso, o povo que vivia há dois séculos já considerava a doutrina real tão questionável e irritante que tentou expurgá-la de vez. A verdade sempre irrita, não importa por quem seja dita. Ela destrói todas as ilusões com que o nosso Eu vive tentando se salvar. A verdade é dura, cortante e pouco propícia aos devaneios e ao auto-engano moral.

Como se lê nas palavras de Sandokai, um dos textos da doutrina Zen:



Luz e sombra

são opostos.

No entanto,

uma depende da outra

como o passo da perna direita

depende do passo da perna esquerda.




No Livro Verdadeiro da Fonte Original lemos o seguinte texto “alertando-nos contra as boas obras". Yang Dschu diz:



"Quem faz o bem talvez não o faça visando a fama; no entanto, esta o acompanhará. A fama nada tem a ver com o lucro; mas o lucro seguirá seus passos. O lucro nada tem a ver com o conflito, mas este surgirá seja como for. Portanto, que o Grande Honorável os proteja de fazer o bem.”



Como autores deste livro sabemos muito bem que grande desafio é apresentar um questionamento à exigência fundamental – e  tida como garantida – de que devemos fazer o bem e ficar longe do mal. Também estamos cientes de que é inevitável que esse tema desperte o medo, o qual podemos combater com mais facilidade se nos agarrarmos às normas aceitas até o momento. No entanto, devemos ousar abordar este tema em todos os seus aspectos.

Não é nossa intenção derivar nossas teses de qualquer religião, contudo, o mal-entendido de que falamos acima relativo à natureza do pecado, trouxe ao circulo cultural cristão uma noção de valores hoje profundamente arraigada em nós, da qual nos valemos muito mais do que gostaríamos.

As outras religiões não tiveram e não têm necessariamente a mesma grande dificuldade com este problema. Na trilogia dos deuses hindus – ­Brahma, Vishnu e Shiva – é Shiva que detém o pape1 de destruidor e assim, ele representa força antagônica a Brahma; o construtor. Uma apresentação como essa torna mais fácil para os homens compreender a inevitável alternância entre forças complementares. De Buda, narra-se a seguinte história: Um jovem aproximou-se dele e pediu para se tomar seu discípulo. Buda lhe perguntou: “Acaso você já roubou?” O jovem respondeu: “Nunca”. Buda retrucou: “Então, vai e rouba e, quando aprenderes a fazê-lo, podes voltar”.

Em Shinjinmei, o mais antigo e por certo o mais importante texto do Zen-Budismo, vemos no versículo 22: "Se restar em nós a mais leve idéia de certo e errado, então nosso espírito se perderá na confusão". O desespero que divide as polaridades em opostos é o mal; no entanto, ele é o próprio caminho que temos de trilhar para obter a percepção intuitiva. Nossa percepção precisa de dois pólos para funcionar, no entanto, não devemos nos limitar a seu antagonismo mútuo, e sim usar sua tensão como fonte de energia e poder no caminho, rumo à unidade. O ser humano é pecador, culpado; mas é justamente essa culpa que representa uma garantia na luta pela liberdade.

Parece-nos muito importante que o homem aprenda a aceitar a sua culpa, sem se deixar oprimir pelo peso da mesma. A culpa humana tem natureza metafísica e não é provocada diretamente pelas ações dos homens. Sua necessidade de escolher e agir é a expressão visível dessa culpa. A aceitação da culpa elimina o medo de tornar-se culpado. O medo representa limitação e é exatamente isso que impede a necessária abertura e expansão da pessoa. Não escapamos ao pecado na medida em que nos esforçamos para fazer o bem, pois isto sempre implica reprimir o pólo oposto, que também é importante. A tentativa de fugir do pecado fazendo o bem apenas nos leva a ser desonestos.

O caminho para a unidade ao contrário, exige mais do que simplesmente fugir ou olhar para o lado. Exige que nos tornemos mais conscientes da polaridade que existe em todas as coisas, sem ter medo de passar pelos conflitos inerentes à natureza humana. Só assim poderemos desenvolver a habilidade de unificar os opostos em nós mesmos. O desafio não é redimir-nos evitando os conflitos, mas permitindo-nos as vivências. Portanto, é necessário estar sempre questionando nossos sistemas de valores fossilizados, e reconhecer que o segredo do mal está, em última análise, no fato de que ele na verdade nem sequer existe.

Já dissemos que além de todas as polaridades existe uma unidade à qual chamamos de Deus ou "Luz". No começo era a Luz, na forma da Unidade oniabrangente. Além da Luz não havia nada pois, do contrário, a Luz não seria oniabrangente. Junto com a polaridade surgiu a escuridão, apenas para tornar a Luz visível. Portanto, apesar de mero subproduto da polaridade, as trevas são imprescindíveis para tornar a Luz visível à consciência polarizada.Com isso as trevas se tornaram servas ou facilitadoras da Luz, “portadoras da Luz”, como nos lembra o próprio nome Lúcifer. Se a polaridade desaparecer, a escuridão desaparecerá também, visto que ela não tem existência independente. A luz existe, mas a escuridão não. É por isso que muitas das lutas citadas entre as forças da luz e das trevas não são autênticas, pois já conhecemos o resultado final. A escuridão não pode fazer nada contra a luz. Por outro lado, a luz transforma de imediato as trevas em luz, razão pela qual aquela tem de evitar esta se não quiser que sua não-existência seja revelada.

Podemos ver o efeito do funcionamento desta lei até no contexto do nosso mundo conhecido, o mundo físico, pois tal como é em cima, é embaixo. Vamos imaginar, por exemplo, que temos um aposento repleto de luz e que, do lado de fora, impera a escuridão. Podemos abrir alegremente as portas e janelas e deixar a escuridão entrar, pois a mesma não transformará as trevas em luz. Agora, invertamos o exemplo: temos um aposento escuro que está cercado pela luz do exterior. Se abrirmos as portas e janelas, desta vez a luz transmutará a escuridão e o aposento ficará iluminado.

O mal é um produto sintético da nossa consciência polarizada, assim como o tempo e o espaço, e serve como um intermediário para a percepção do bem, sendo de fato o próprio útero da luz. É por isto que o mal nunca é o oposto do bem: a polaridade em si é que é má, ou um pecado, pois o mundo da dualidade não tem um limite natural e, assim sendo, não tem experiência própria. Ele apenas leva ao desespero, que por sua vez só serve para um novo início e para a compreensão de que a salvação dos homens só pode ser encontrada na Unidade. A mesma lei também serve para a nossa consciência. Usamos a palavra consciente para designar as características e os aspectos humanos que ficam na luz de sua consciência e que os homens podem ver. A área que não é iluminada pela luz da consciência, e que portanto é escura, denomina-se inconsciente. Contudo os aspectos sombrios somente parecem maus e infundem temor enquanto estão na sombra. O simples fato de olhar para os conteúdos da sombra traz luz para as trevas e isso basta para tornar o inconsciente consciente.



Olhar para as coisas é a grande fórmula mágica do caminho para o autoconhecimento. O mero fato de observar modifica a qualidade daquilo que está sendo observado, pois esse ato traz luz, ou seja, consciência à escuridão. Os homens vivem desejando mudar tudo e não compreendem que a única coisa que se exige deles é a capacidade de observação. O mais elevado objetivo dos homens – quer lhe demos o nome de sabedoria ou de iluminação – está na capacidade de poder observar tudo e de poder conhecer que é bom do jeito que está. Esse é o verdadeiro autoconhecimento. Enquanto algo perturbar o homem e ele considerar que isso tem de ser alterado, ainda não atingiu o autoconhecimento.

Precisamos aprender a observar as coisas e os acontecimentos deste mundo sem que nosso ego desenvolva uma simpatia ou antipatia imediata; é preciso que aprendamos a contemplar com uma mente inteiramente em paz a totalidade do jogo multifacetado da ilusão (maya). É por isso que lemos no texto zen acima citado que basta um pequeno conceito de Deus ou do demônio para trazer confusão ao nosso espírito. Qualquer julgamento de valor nos enreda no mundo das formas nos leva ao apego. Enquanto formos apegados não nos livraremos do sofrimento. Continuaremos pecadores, imperfeitos e doentes. No ínterim, perdura o nosso anseio por um mundo melhor e existe a tentativa de muda-lo. E eis o homem outra vez perdido em meio às ilusões dos reflexos, pois ele acredita na imperfeição do mundo e não percebe que é só o seu olhar que é imperfeito, já que o impede de ver a totalidade.

É por isso que temos de aprender a nos reconhecer em tudo e, assim, sermos totalmente imparciais. A imparcialidade implica buscar o ponto central entre as polaridades e então, a partir deste ponto, observar o ritmo em constante alternação dos pólos. A imparcialidade é a única postura que nos permite observar os fenômenos aparentes sem avaliá-los, sem manifestar um apaixonado sim ou não, sem nos identificarmos com eles. Não devemos confundir essa imparcialidade com indiferença que é uma mescla de desinteresse e falta de envolvimento, à qual Jesus se refere quando fala dos "mornos". Estes nunca se envolvem nos conflitos e acreditam que se pode, através da repressão e da força, alcançar aquele mundo perfeito que o buscador genuíno tem de trabalhar com afinco para alcançar, na medida em que reconhece a dimensão conflitante de sua vida, e que não teme percorrê-la de forma consciente e deliberada, através das polaridades, a fim de superá-las. Essa pessoa sabe que, a qualquer momento, terá de ouvir outra vez os opostos que seu ego criou. Esse buscador não teme as escolhas necessárias, mesmo sabendo que com elas sempre se toma "culpado"; esforça-se, porém, para não estagnar nessa culpa.

Os opostos nunca se unirão por si mesmos; temos de vê-los em ação antes de começar a aceitá-los. Só então, quando tivermos conseguido integrar ambos os pólos, toma-se possível descobrir aquele ponto central de onde encetar a missão de uni-los. De todas as abordagens, o escapismo e o ascetismo são as menos indicadas para atingir essa meta. O melhor a fazer é enfrentar os desafios da vida com consciência, com coragem, sem medo. A expressão mais importante da frase precedente é com consciência, pois é unicamente a consciência que pode nos permitir observar tudo o que fazemos e que pode assegurar-nos o êxito em nossa busca. O que a pessoa faz não tem tanta importância; o que importa é como ela o faz. Os julgamentos "bom" e "mau" sempre se referem ao que a pessoa faz. Mas aqui essa consideração é substituída pela pergunta como é feito. Estaremos agindo com consciência? Há envolvimento do ego no que fazemos? Estamos agindo sem deixar que ele se envolva? A resposta a essas questões é que decidirá se estamos usando nossas ações para ficarmos presos ou para nos libertarmos.

Os mandamentos, as leis e a moral não acompanham o ser humano até este alcançar o objetivo da perfeição. Obediência é uma ótima virtude mas não basta, pois é bom que saibam, "também o demônio obedece. Mandamentos e proibições externos são bastante válidos enquanto a nossa consciência ainda está amadurecendo, e até aprendermos a ser responsáveis por nós mesmos. Ensinar nossos filhos a não brincar com fósforos é correto, mas isso se toma supérfluo quando eles crescem. Quando encontramos nossa própria lei interior, esta nos livra de todas as outras. A lei mais interior de cada uma das pessoas é a obrigação de descobrir o seu verdadeiro centro, o seu si-mesmo, e de concretiza-lo, ou seja, tomar-se uno com tudo o que existe.

A ferramenta essencial para unir os opostos chama-se amor. O princípio do amor implica receptividade e abertura para deixar entrar tudo aquilo que até então era exterior. O amor busca a unificação; o amor quer fundir-se e não isolar-se. O amor é a chave para a união dos opostos, visto que ele transforma o tu em eu, e o eu em tu. O amor é uma aceitação que não tem limites nem imposições; é incondicional. O amor quer tomar-se uno com o universo inteiro e, enquanto não conseguirmos isso, não teremos concretizado o amor. Enquanto o amor ainda for seletivo, não será verdadeiro, pois o amor não separa. O que separa é a escolha. O amor não conhece ciúme, pois não quer possuir nada: ele quer irradiar-se.

O símbolo para esse amor oniabrangente é o próprio amor de Deus pelos homens. Nesse contexto, dificilmente cabe a idéia de que Deus faz diferenças ao distribuir Seu amor. Também não passaria pela cabeça de ninguém ter ciúme de Deus porque ele ama outras pessoas. Deus – a Unidade – não diferencia entre bom e mau, e é por isso que Ele é o amor. O sol irradia seu calor para todos os seres humanos e não distribui seus raios segundo o merecimento dos mesmos. Só o ser humano se acha no direito de atirar pedras; ao menos, ele não deveria admirar-se de só acertar em si mesmo. O amor não conhece fronteiras, o amor não conhece obstáculos, o amor transmuta. Amem o mau – e ele será redimido.

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